Cidades
‘Minha filha é maior do que isso’, diz mãe de médica morta em Rio Preto
Tribunal do Juri de Davi Izaque Martins, o monstro que tirou a vida da médica Thallita da Cruz Fernandes aos 28 anos, será na próxima terça-feira (22/4), em Rio Preto

Faltando quatro dias para o Tribunal do Juri mais aguardado pela família e pelos amigos da médica Thallita da Cruz Fernandes, assassinada aos 28 anos pelo namorado e colocada dentro de uma mala, na área de serviço do apartamento em que morava em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, o Gazeta de Rio Preto conversou, com exclusividade, com a empresária Juliana Cruz, mãe da vítima.
Na próxima terça-feira (22/4) o Júri Popular formado por sete cidadãos comuns da sociedade, deve decidir pela condenação de Davi Izaque Martins, o monstro que matou Thallita. Ele é acusado pelo Ministério Público de homicídio qualificado por motivo torpe, mediante meio cruel, recurso que dificultou a defesa da vítima e crime contra a mulher em razão da condição do sexo feminino (feminicídio).
O crime aconteceu no dia 18 de agosto de 2023, no prédio onde os dois moravam na Vila Imperial.
(Arquivo pessoal)
É POR ELA!
Quase dois anos após perder a filha, Juliana, que passou por todo um processo delicado de aceitação do luto, reuniu forças e lançou uma campanha virtual junto com os familiares, amigos e todos àqueles que se sensibilizaram com a história de Thallita. Com a hashtag ‘Justiça por Thallita’ e o lema ‘Pelo direito de existir, pelo direito de viver’, ela diz sentir-se forte para lutar por Justiça e chamar mais atenção das autoridades sobre o feminicídio.
“A ideia de movimentar as redes sociais veio após recebermos a notícia da chegada do julgamento; eu senti que tinha que fazer algo. Se naquele dia eu não consegui defendê-la, agora eu posso fazer alguma coisa, e isso é lutar por ela, é lutar para que a Justiça seja feita, para que ele seja condenado da forma que merece. Não sei se conseguirei mudar alguma coisa, mas é importante chamar atenção das autoridades para que as leis do crime de feminicídio sejam mais severas. Existem casos em que a Justiça não é feita. Existe a prisão, mas eles recebem redução de pena, benefícios, saidinhas…Aqui (no Brasil) ninguém tem medo; a gente vê cada absurdo que o ser humano está fazendo e eles não tem medo porque sabem que as leis aqui não são rigorosas, eles não pensam duas vezes”, afirma.
NEM UMA THALLITA A MENOS
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre os anos de 2023 e 2024, os casos de feminicídio aumentaram 14% no interior de São Paulo. Em todo o País, 1.450 feminicídios foram registrados no ano passado.
“A Thallita sempre defendeu os direitos das mulheres. Eu estava revendo as publicações dela e achei uma que dizia algo assim ‘estamos todas juntas nesta briga’. Eu sei que, se isso tivesse acontecido comigo, ela lutaria por mim. Então, essa luta é pela minha filha, por todas as outras vítimas e por nem uma Thallita a menos. Existe uma frase de uma campanha que diz assim ’em briga de marido e mulher, se mete a colher sim’. Eu acho que essa frase não faz sentido porque foi a maior dificuldade que tive para saber se a minha filha estava em perigo. Quando a amiga dela estava na recepção do prédio, ela não tinha autorização para entrar no apartamento porque o porteiro não deixava. Eu liguei para o porteiro e falei que a minha filha poderia estar em perigo, ele disse que não tinha autorização, que não podia deixar arrombar a porta, que ele perderia o emprego. Eu falei para ele que eu pagaria pela porta e arrumaria um emprego para ele, mas nada adiantou. E aquela pessoa lá dentro, com a minha filha. Nem a polícia podia entrar; o porteiro teve que ligar para a dona do apartamento e pedir autorização. Como ‘meter a colher’ se existem essas dificuldades? Se uma mulher está em perigo, se há suspeita de algo grave, por que tanto impedimento?”.
NÃO ERA A MINHA FILHA
“No dia 18 de agosto de 2023, era uma sexta-feira. Fui trabalhar normalmente. Minha mãe tinha o hábito todos os dias de mandar um ‘bom dia’ para a Thallita, mas era por volta das 13h30 e ela não tinha respondido. A Thallita ficava até brava com isso, éramos ‘neuróticas’. ‘Vocês são doidas? Não pode fazer nada, nem dormir direito!’ ela falava para a gente. Nós duas nos conhecíamos muito; mandei mensagem para ela e quando a resposta chegou, percebi que não era a minha filha. ‘Está tudo bem sim’. Minha filha não falava daquele jeito comigo. Para a minha mãe, a mesma coisa ‘dia cansativo, a noite a gente conversa’. Entrei em desespero, liguei para a amiga dela e pedi para ela ir até o apartamento, peguei o carro com o meu marido e fomos para Rio Preto. O pai dela estava indo também, em outro carro. Eu pensei que haviam assaltado, ou sequestrado a minha filha, jamais imaginei que era aquilo. Eu soube no meio da estrada, fiquei paralisada, fiquei sem chão. Eu não acreditava, falava que era uma informação errada e que encontraríamos ela viva…Mas, quando cheguei e vi os amigos dela em frente ao prédio, desabei, era real”.
MOTIVAÇÃO
“Eu não sei a motivação, acredito que seja porque ela mandou uma mensagem terminando o relacionamento. Havia um tempo que eles estavam juntos e ele não arrumava emprego, ou arrumava e dizia que o patrão não pagava. Ela acreditava, mas comecei a desconfiar e fui alertando . Ela sabia que ele teve menos oportunidades, mas ela queria que ele evoluísse, que ele estudasse, que ele trabalhasse. Eu falei ‘poxa, você tem um namorado ou um filho que não trabalha?’ Ela chegou a procurar emprego para ele, mas ele sempre inventava uma desculpa. Ela mandou uma mensagem dizendo ‘chega, acabou’, disse que ele era oportunista e que ela não queria mais; eu me senti culpada porque foi eu quem alertei ela, mas também aprendi que existem coisas que não posso controlar. Não adianta querer saber tudo, controlar horário, o local onde os meus filhos vão, com quem eles estão, se algo tem que acontecer, eu não tenho controle de nada. Mas eu acredito que ele iria dar um fim no corpo dela e só não conseguiu porque a mala rasgou. Para mim, isso é muito pior do que ver o enterro de um filho, você nunca saber onde ele está”.
UM DIA APÓS O OUTRO
A ausência da filha sempre será uma lacuna, mas, hoje, Juliana está bem. Ela conta que ficou um longo período sem conseguir tocar no assunto, sem conseguir ver as fotos ou ouvir os áudios da filha, que ainda mantém armazenados em seu celular; enfrentou um período de isolamento – preferia ficar em casa do que sair à rua e lidar com os olhares dos curiosos.
“Não é algo (a superação) que a gente escolhe, isso vai se transformando. Às vezes eu estava conversando e rindo, e logo vinha uma tristeza enorme; as pessoas vinham falar comigo sobre ela, e eu só chorava. Eu sempre estou pensando nela e, um dia, eu estava dirigindo e senti que precisava encostar o carro. Peguei o meu celular e coloquei um áudio dela para ouvir, foi a primeira vez que ouvi a voz dela depois de tudo o que havia acontecido. A partir desse dia eu ouvi outro, fui vendo as fotos, os vídeos…Entrei na rede social e vi as publicações que ela me marcava, depois desse dia, me senti mais preparada. Eu li uma frase em um livro sobre o luto, que diz ‘quando alguém perde uma mãe, vira órfão, se perde o marido, vira viúva…Mas não existe uma palavra para quem perde um filho. Isso é inverter a ordem, não desejo isso a ninguém. É viver sem uma parte sua”.
SEMPRE AMADA
“Eu soube que a minha filha era muito amada, que os pacientes dela em Bady Bassitt escolhiam ir na unidade quando ela estava lá porque gostavam do atendimento dela. Os amigos dela me dão muita força, nunca vi igual; ela tem um monumento em homenagem a ela, na Famerp. Ela era apaixonada pela bateria do grupo da faculdade, eu não sabia que ela era tão querida assim. Thallita sempre ajudava as pessoas. Era feliz, engraçada, boazinha. Nunca me deu trabalho na adolescência; estudou quatro anos no cursinho para passar na faculdade pública e fazer medicina. Hoje, vejo os amigos dela terminando a residência e vejo que ela poderia estar ali também…Mas ela está comigo o tempo todo, eu converso com ela o tempo todo. Lembro de quando ela fazia chamadas de vídeo dentro dos provadores das lojas porque ela gostava de provar as roupas e decidir quais iria comprar, com a minha opinião. Dávamos muitos conselhos uma para a outra, éramos muito amigas, ela tinha orgulho de mim porque, segundo ela, eu a ensinei a vencer sem ‘seguir os padrões da sociedade’. Minha filha é muito maior do que tudo isso”.
(Arquivo pessoal/ cedido ao Gazeta de Rio Preto)