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A coragem de ser quem se é
Artigo escrito por Alexandre Lino, autor de “Reunião de Condomínio” e psicólogo

A coragem de ser quem se é
Todo indivíduo carrega três versões de si mesmo, como quem guarda chaves sem saber exatamente onde usar. Existe o que se acha que quer — geralmente são desejos embalados por expectativas alheias. Existe o que se diz querer — polido, socialmente apresentável e ideal para o discurso público. E existe o que realmente se quer — essa parte silenciosa, incômoda e, por algum motivo, hábil em se esconder do próprio dono.
O problema é que, de perto, essas três versões parecem não se conhecer. Uma sonha com estabilidade, outra repete que busca mudança, a terceira anseia correr na direção contrária do mapa. Nesse conflito interno, a pergunta é inevitável: afinal, quem está no comando?
A resposta curta é a incerteza. A longa depende da coragem do momento.
Reconhecer a própria identidade exige trabalho. Primeiramente, porque não há treinamento para isso. A educação social foca em ajustar postura, volume, ambição e até o tamanho do sonho, como se a autenticidade viesse com manual de instruções. Além disso, admitir o desejo real envolve transpor obstáculos robustos: a vergonha, o medo do julgamento, crenças limitantes e a onipresente “opinião alheia”. Essa, uma entidade que raramente paga a conta, mas insiste em escolher o prato.
Contudo, descobrir-se é apenas metade do percurso. A outra metade é a admissão. Para o mundo e, principalmente, para si mesmo. É neste ponto que muitos recuam: admitir o desejo real é firmar um compromisso. Dizer “eu quero isso” implica saber que, a partir dali, nada mais será o mesmo na própria vida.
E esse é o medo paralisante. O desconhecido da mudança em muitos casos não é visto como combustível que mantém a chama da curiosidade acesa, mas sim como uma barreira intransponível. Admitir que quer algo diferente para si é encarado por tantos como se um investimento errado tivesse sido feito: na carreira, nas relações, nas escolhas pessoais. Essa falácia do custo investido se transforma em razão para manter-se na bruma do autoconhecimento não descoberto.
Há, no entanto, um aliado frequentemente subestimado que pode aliviar essa pressão: o tempo. O avanço da medicina estendeu a longevidade a ponto de transformar um recomeço aos 50 anos em mais décadas de estrada. Há tempo suficiente para desfazer nós antigos, refazer caminhos, errar, consertar e recomeçar quantas vezes forem necessárias.
Talvez o grande desafio contemporâneo seja aceitar a permissão de escolher a si mesmo. Mesmo que pareça tarde, tortuoso ou assustador. Assumir a própria vontade, ainda que ela soe estranha ou incompatível com o currículo, é um ato de bravura.
No fim, ser quem se é não exige heroísmo, mas honestidade. Do tipo raro, que liberta. Se as três versões internas puderem concordar em algo, que seja nisto: ninguém está atrasado para si mesmo. Com a aproximação de 2026, surge a oportunidade não apenas de traçar metas de produtividade, mas de estabelecer o objetivo mais nobre de todos: viver a própria vida, verdadeira, que sempre esteve à espera de uma chance para sair do esconderijo.
Alexandre Lino. Autor de “Reunião de Condomínio”, psicólogo formado pela UFBA e pós-graduado em Gamificação com mais de 15 anos de experiência na área de RH e desenvolvimento de pessoas.



